vol.1
n. 04_Corpografias Urbanas 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

entre[vista] :: Fabiana Dutra Britto e Alejandro Ahmed

Nesta entrevista, des[dobra]  propõe uma reflexão a partir das expressões "corpografias urbanas" e "a cidade como fenótipo extendido do corpo", para que Fabiana Dutra Britto [FB] e Alejandro Ahmed [AA] experimentem algumas implicações destas nas suas experiências, segundo a conjuntura contemporânea que circunscreve as relações entre corpo, cidade e ambiente. Alguns comentários-proposições em vermelho do nosso corpo editorial buscam criar uma tônica de diálogo com as idéias dos entrevistados.

1. Corpo / cidade / ambiente / corporalidade inscrevem-se mutua-mente uns sobre os outros, desencadeando uma imbricação aguda entre estas instâncias, donde insurgem  a elaboração de idéias como 'corpografias urbanas' e 'cidade como fenótipo extendido do corpo'. Ainda, Como pensar estes conceitos nas suas experiências urbanas/ acadêmicas/ artísticas  e corporais, de forma à aprofundar nos seus significados e desdobramentos?

[AA] Estes conceitos partem do pressuposto que nós também somos o ambiente, nós também somos a cidade. O corpo da e na cidade é também a cidade. Cidade e corpo podem ser pensados como corpos de qualidades diferentes formando um outro corpo que contém os dois. 

[FB] Vou responder discutindo a própria formulação da pergunta porque nela já aparecem os dois problemas mais comuns acerca do modo como se entende e é tratado o relacionamento entre corpo / cidade / ambiente: a compreensão desses termos como categorias ou “coisas em si” e a compreensão  do relacionamento entre eles como situações regidas por causalidade. Na compreensão que proponho, essas coisas não têm existência própria e independente, portanto não inscrevem-se umas sobre as outras; e a imbricação entre elas não é algo resultante, ou desencadeada pela inscrição de uma sobre a outra.   Diferentemente disso, as idéias de “corpografia urbana” e “cidade como fenótipo extendido do corpo” só fazem sentido se pensamos corpo, cidade e ambiente como instâncias de um mesmo e único processo – na acepção científica do termo: conjunto de relações simultâneas.
Se admitimos que os relacionamentos não causam a modificação de uma coisa sobre a outra mas, sim, promovem a reorganização contínua e irreversível das suas estruturas, em aspectos e intensidades imprevisíveis, então, é possível compreender cada coisa – ou configuração - como sendo uma síntese transitória dos seus relacionamentos com as outras (não apenas essas três aqui enfocadas). Sob este ponto de vista, corpo e cidade são co-fatores de configuração de um contexto. E ambiente é o conjunto de condições circunstancialmente disponíveis por essas configurações para os relacionamentos entre elas se estabelecerem. Sob este ponto de vista, os processos não são desencadeados por nenhuma ação voluntária ou força exterior, pois são a própria manifestação da ação do tempo.

:: então, os processos iniciados na relação corpo, cidade e ambiente independem da ação das coisas envolvidas neles ou fora deles. Ou seja, significa dizer que não é possível engenhar nenhum tipo de orientação na dinâmica desses processos ::

[FB] Não. Isso não significa, é claro, que não podemos desenvolver estratégias de condução desse processo a partir de propósitos pré-definidos pois é disso, aliás, que se trata a função de um urbanista ou um artista, por exemplo, que são profissionais diretamente comprometidos com a dinâmica desse processo relacional entre corpo/ cidade que configura um ambiente. Um compromisso baseado numa compreensão desse processo que é construída corporalmente, a partir da própria experiência de cada um no relacionamento com outros, em diferentes contextos ao longo da vida. Seria, portanto, a experiência corporal dos ambientes que nos possibilita a compreensão dos contextos e o aproveitamento das condições disponíveis para continuidade dos nossos relacionamentos com o mundo e não o contrário, como se costuma pensar.

:: agora Fabiana Britto entra na segunda parte da primeira pergunta, que se refere ao uso dos conceitos 'corpografias urbanas' e 'cidade como fenótipo extendido do corpo', e os desdobramentos desse uso ::

[FB] Por isso, entendo as situações urbana, acadêmica e artística como campos para a experiência relacional do corpo, que não apenas possibilitam novos significados e desdobramentos dos conceitos de corpo, cidade, ambiente mas, inclusive, são geradores deles. Neste sentido, a experiência será tanto mais rica e os conceitos gerados por ela tanto mais complexos quanto maiores forem os desafios adaptativos apresentados ao corpo pelas condições relacionais disponíveis em cada ambiente. É justamente como fórum de reflexão crítica acerca dessa dinâmica envolvendo corpo, cidade e arte que o corpocidadee sua plataforma de ação pretendem atuar.  
Como parte dessa proposta estamos realizando um intercâmbio entre estudantes de pós-graduação da UFBA (Dança e Arquitetura e Urbanismo) e da Bauhaus – Weimar (Arquitetura e Urbanismo e Arte Pública) para ser um workshop colaborativo de experimentação das duas cidades, a partir dos temas de pesquisa de cada um.

:: uma pausa para refletir que uma experiência relacional é também uma experiência artística, que pode se configurar como uma corpografia urbana. Continuemos a leitura, agora sobre os interesses de Alejandro como artísta pesquisador ::  

[AA] Meu interesse artístico atual tangencia esses conceitos investigando seus desdobramentos através de dois focos de pesquisa conduzidos junto ao Grupo Cena 11: “dança, corpo, comportamento e vocabulário” e “dança, ocupação e resistência”. Cada cidade imprime um comportamento que pode ser rastreado e filtrado em vocabulário corporal, assim como cada comportamento requer um tipo de cidade que o acolha. Pensar em comportamento e vocabulário para nós é buscar métodos efetivos de produzir e entender o design de movimento com características de forma e função que cumpram prerrogativas importantes para a construção da dança que procuramos. Uma dança onde a evidência de co-autoria é o agente diretor dos nossos rumos.
Ao produzir comportamento para extrair vocabulário, desviamos da armadilha do “passo de dança” e desenvolvemos ferramentas para melhor analisar e  compreender como diferentes informações se instauram de forma evidente e emergente no corpo e como utilizar comportamento para conduzir nossa pesquisa de movimento.

:: mais um pouco sobre o "passo de dança" como algo endêmico na relação corpo, cidade e ambiente ::

[AA] O “passo de dança”, quando incoerente com a analise comportamental que o contextualiza, não compartilha no seu design a evidência que é co-autoral em qualquer instância. Ele se propõe como mercadoria do corpo e não acontecimento. E a cidade como foco gerador de comportamento pode ser mapeada no corpo e trilhada pelos sintomas que dele afloram, e que estamos chamando de vocabulários.
Assim comportar-se em São Paulo é sintomático, e esses sintomas mudam se estivermos em Fortaleza. Os sintomas/vocabulários são mapas de qualidades comportamentais. Entendendo estes mapas, podemos fazer leituras de como qualidades comportamentais se instalam, procurando identificar as características que o ambiente propõem para tal necessidade adaptativa na maneira que o corpo resolve seus “problemas”.
A cidade mostra seu design, e o corpo é parte dele. A cidade ao evocar comportamento potencializa vocabulários do mover. A cidade no nosso foco artístico atual pode ser questionada como um mapa no qual o corpo justapõe o seu e é orientação e acontecimento, um sobrepor de atos e signos, que é desvendado enquanto ocorre e aponta para o movimento como estratégia de permanência. A cidade fixa uma possibilidade de corpo, uma possibilidade de dança. Temos que sofisticar nossa leitura destes mapas para podermos propor questões em diferentes vias de transito entre corpo, cidade e dança.

:: nesse momento, Alejandro propõe alguns sentidos para essa sofisticação da leitura dos comportamentos urbanos como mapas ::

[AA] "Ocupar" o lugar (objeto, imagem, espaço, som, pessoa) que instantaneamente oferece sua identidade e utilizar a forma e a função que o definem para reorientar seu design. Já "resistir" à solenidade da espetacularidade. Ao conforto do entendimento óbvio. Com ferramentas rústicas desmontar a cordialidade que o conceito de espetáculo tem com seu cúmplice, seja espectador ou ator.
Propomos a idéia de “desfuncionalização” como propriedade estratégica para ocupar e resistir. Partindo da definição de design como: a relação entre forma e função. Subverter a função de algo é redefinir seu design, e reorientar formalmente um corpo é adaptá-lo a uma nova função. Adaptabilidade então é usada como ferramenta para produzir design.
Servindo-se de ações formais simples, propomos a identificação das funções de um corpo (objeto, imagem, espaço, som, pessoa) para re-locar seu significado partindo das características que o definem. Assim pretendemos ocupar significações convencionadas para direcioná-las à novas possibilidades de sentido.

2. Como pensar estas cartografias no e pelo corpo numa perspectiva contemporânea, em que o trânsito entre cidades, o nomadismo e a mobilidade assumiram um lugar central na experiência urbana/ afetiva/ profissional/ social/ cognitiva?

[AA] O corpo constrói e procura suas redes para poder habitar com destreza por onde anda. Nele se inscrevem as possibilidades de existência nos lugares que circula real e virtualmente. As cartografias no e pelo corpo são mapas de conhecimento, são colocadas à prova a medida que emergências são solicitadas. Assim o corpo revela quem é e de onde é, por onde passa e onde pode estar com a habilidade de manter-se integro naquilo que formula como identidade. Quando outro corpo intervém respondemos como quem somos e que território estamos aptos a ocupar.

[FB] A dita perspectiva contemporânea, que enfatiza o aspecto transitório das configurações só faz acentuar a inadequação de uma cartografia como representação da experiência corporal – seja ela urbana, afetiva, profissional, social, cognitiva – pois não acolhe a sua dinâmica processual. Uma cartografia pode, quando muito referir-se à sínteses resultantes desses processos: suas configurações transitórias.
Diferentemente, a idéia de corpografia propõe uma compreensão do corpo como sendo ele próprio uma representação dinâmica das suas próprias experiências relacionais nos diferentes ambientes de sua existência – aquelas que ganharam alguma estabilidade (tornaram-se hábito) como padrão sensório-motor. E a idéia da cidade ser o fenótipo extendido do corpo expressa justamente essa co-determinância entre o corpo e seu ambiente de existência: propõe que se pense no corpo como sendo uma síntese dos padrões sensório-motores que foram selecionados ao longo dos seus processos relacionais com a cidade, e, a cidade, como sendo a síntese resultante desses padrões de ação corporal dos seus habitantes.

:: pensemos: Não seria determinista a idéia de síntese resultante ou mesmo de seleção? Fabiana reforça brevemente essa questão ::

[FB] Importante ressaltar que não se trata de determinismo, mas sim de uma construção compartilhada, um processo simultâneo de configuração do corpo e da cidade, cujas resultantes manifestam-se em suas diferentes escalas de tempo.