vol.1
n. 04_Corpografias Urbanas 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

Reportagens:::

Zonas em-compreensão

por Cacá Fonseca

Entrar  em determinado campo de reflexões, idéias, pensamentos uns aleatórios outros formulados entre esforços na conexão de autores, experiências, lugares  figura  uma espécie de entrada num zona  em-compreensão, em estado de  fazer e desfazer entendimentos. Zona de convergência de inquietações, percursos,  questionamentos  instituídos à partir de um sem número de possibilidades de estar e pensar o mundo. Estas zonas em-compreensão circunscrevem  toda e qualquer experiência seja acadêmica, artística, científica, técnica, voluntaria e involuntariamente. Às vezes nos encontramos presentes em determinada discussão sem sequer tomar conhecimento  disso, as vezes desestabilizamos propositalmente aquilo que se costuma designar por paradigmas, as vezes nos distanciamos de determinadas hipóteses para nos aproximarmos de outras. O que de mais potente  esse movimento revela é a possibilidade de sobreposição, de encontros destas zonas e a conformação provisória de outras, num fazer/ criar/ inventar novos conhecimentos.

Nesta edição, a Revista Des[dobra] relata  diferentes encontros suscitados ao percorrer a zona em-compreensão delineada em torno das questões acerca da cidade e seus inapreensíveis processos. Estes encontros revelam a diversidade de mobilizações ali articuladas,  tais a  Revista Urbânia, o evento Alkantara Festival 2008 (antigo Danças na Cidade) e a intervenção-instalação Pituba R1.   Fluxos heterogêneos cujos movimentos variam entre convergências e divergências de abordagens que perpassam perspectivas artísticas - urbanísticas - geográficas - arquitetônicas - performáticas - corporais. Sobretudo, estes  revelam a  multiplicidade imanente destas zonas, onde não é possível pensar em termos evolutivos, mas numa perspectiva co-evolutiva, donde a  potência de cada engajamento encontra-se nas possíveis relações a serem desencadeadas entre todos eles.    

Talvez pensar  em não evitar algumas qualidades na construção dessas zonas em-compreensão, como a simpatia, o encanto, a atração, o divertimento, a sensação prazerosa de se deparar com determinadas possibilidades de ler o mundo, a cidade, as artes, as experimentações urbanas e se arremessar nesta zona. Entender  ali como um espaço de reverberação de inquietações, de adesões políticas, sociais, estéticas, afetivas e de apropriação de outras hipóteses.   Conhecimento enquanto sentimento, enquanto afecção,  potente de incertezas e incompreensões em intenso esbarrar, encontrar, modificar, contagiar.

 

encontro de cacá fonseca e edu rocha com :: revista urbânia

encontro de aline porto com :: PITUBA R1, o ônibus foi pra galeria

encontro de joubert arrais com :: Danças na Cidade (Alkantara Festival 2008)

 

encontro de cacá fonseca e edu rocha com::: 
revista urbânia

Revista Urbânia acaba de publicar seu terceiro número e traz em sua concepção  a tônica dos encontros, à medida que coloca em contacto experiências/ idéias paulistanas, cearenses, baianas... Nas duas primeiras edições, a Urbânia – 2001 e 2002 – operou por um circuito extra-oficial, talvez marginal para viabilizar a circulação de suas produções, “a Editora Pressa - editora independente de Graziela Kunsch, hoje tocada por Graziela e Vitor Cesar - enviava aproximadamente dez cópias para uma série de coletivos de artistas espalhados por diferentes cidades brasileiras. Como a publicação possuía uma licença de livre reprodução, que estimulava as pessoas a copiá-la e distribuí-la, a tiragem inicial acabava se multiplicando.”

Refletir acerca da cidade e operar numa lógica tão afim aos seus processos  confere substância política à esta iniciativa. A coexistência de circuitos  oficiais- extra-oficiais, marginais e centrais, superiores- inferiores  no que diz respeito aos aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos, estéticos  e a sua apropriação e re-significação por parte daqueles que vivem-produzem-criam as cidades efetivam aquilo que Guattari denomina de micropolítica e De Certeau  chama de táticas e estratégias, acionadas pela Urbânia  na sua circulação  rizomática de pensamentos, idéias, vivências, relatos, enfim, na dilatação da zona em-compreensão à qual se articula.

A Urbânia 3 – editorada por Graziela Kunsch que também assina o texto “Prática Urbana” – apresenta diversos “colaboradores” que nos oferecem com suas criações, tanto em escritos como em registros de ações artísticas no espaço urbano, reflexões que evidenciam cidades pela dimensão de suas vivências. A Revista funciona como um dispositivo político-intelectual que transmite a “idéia” de cidades que se produzem pelas ações diárias dos nossos corpos, realizadores de cotidianos urbanos; coloca-nos na posição de “urbanistas” das cidades onde vivemos, como afirma David Harvey, no texto de abertura da Urbânia 3: “Todos somos, de um jeito ou de outro, arquitetos de nossos futuros urbanos. O direito à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias, quer estejamos cientes quer não”.

Uma apologia da experiência do cotidiano urbano se delineia por todo o corpo da Revista, seja em trabalhos artísticos como o “Lotes Vagos” de Louise Ganz e Breno da Silva, que se apropria de “áreas abandonadas” (terrenos baldios) da cidade, estruturando nelas ocupações inusitadas que quebram a experiência habitual do transeunte desta área urbana, provocando na quebra a percepção não só do espaço como da possível livre ocupação deste; ou em artigos acadêmicos como o escrito por Rubens Mano “Um lugar dentro do lugar”, em que  o artista enfatiza a possibilidade da intervenção artística no espaço urbano converter o “usuário” desse espaço em “perceptor” dele, caso o artista propositor  “desloque” a percepção do usuário urbano, que se encontra neutralizada pelo seu hábito, interferindo assim na constituição de novas experiências da cidade.

As idéias-experiências ali relatadas podem engendrar um sem número de reflexões acerca de seus conteúdos, que não se encerram em textos-imagens objetivados nas páginas da revista, mas extrapolam o que está visível no caderno de capa acinzentada e folha de rosto pautada. O objeto da ordem do visível congrega  toda circunstância  em torno da qual se desenrolou sua produção, e por ora, detém-se sobre a questão da circulação, da mobilidade de algo dentro do contexto urbano para tecer outras tramas à partir das matérias de expressão cunhadas na Urbânia.  A circulação de mobilizações tão diversas  significa a possibilidade de expansão dos contornos da zona em-compreensão, de aprofundamento de idéias e do efetivo encontro de sensibilidades e subjetividades envolvidas nestes processos.

encontro de aline porto com ::: 
PITUBA R1, o ônibus foi pra galeria

O artista franco-canadense Gonzague Verdenal viveu em Salvador entre 2003 e 2005, e neste período captou algumas imagens do cotidiano soteropolitano. Foi em suas viagens rotineiras de ônibus, na linha PITUBA R1(1) que ele observou as negociações entre passageiros e paisagens, interação que se desdobrou na instalação PITUBA R1, exposição de fotografias e desenhos, na Galeria Canizares, Escola de Belas Artes da UFBA.

No dia da abertura, dia 18 de junho de 2008, a BTU disponibilizou uma linha extra do ônibus, que saiu do Campo Grande pela rota da linha Pituba R1, conduzindo o artista Gonzague, imprensa, artistas convidados e passageiros. Estes eram informados pelo cobrador sobre a gratuidade do transporte, e que ao findar seu trajeto completo, retornaria em direção ao Campo Grande, para a exposição do artista na Galeria Canizares.

Com direito a pandeiros e batucadas, a viagem no ônibus PITUBA R1, parecia um ônibus de excursão, e de fato era um ônibus em direção à galeria, era uma festa. A TV com suas luzes e câmeras deveriam filmar o espontâneo, mas acabaram por permanecer em um ponto cego. As possibilidades de negociação com uma câmera gigantesca e seu conjunto de luzes eram estranhas ao cotidiano daquela linha que, portanto só foi estabelecido quando a equipe de TV desceu num ponto da orla da Pituba, e os passageiros ordinários embarcaram no ônibus. Entraram um palhaço com sua mala de surpresas e seus poemas e voz encantadora, uma senhora admirada e apaixonada que recitou seus poemas de amor enquanto se deslocava na cidade, o baleiro, e conforme o samba perdia a vez, o silêncio da viagem ordinária possibilitou aos artistas-dançarinos a interação entre movimento passagem e ordem, troca-troca de lugares e olhares através de espelhos, distribuídos e negociados. Quando o ônibus seguia seu retorno rumo à galeria, os passageiros ordinários haviam descido e novamente a experiência do percurso era a dos convidados rumo à exposição, uma festa extraordinária.

Na Galeria o corpo do visitante era suporte para as projeções das imagens, e interagir com o outro era necessário para sua apreensão por completo, seja através da união de pequenos papeis ou dos próprios corpos. Ali, funcionavam as negociações e comunicações – ei, dá licença, oi posso passar, oi chega pra cá, vai mais pra lá – e de repente havia blocos de 7, 10 pessoas juntas pela galeria, construindo as lâminas da exposição de Gonzague.

links youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=Gwlvna0mWdE

http://www.youtube.com/watch?v=fDsfE3r0Ktw&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=_kMDlUbULDk&feature=related

Site de Gonzague: www.eugaznog.com

encontro de joubert arrais com :::
Danças na Cidade (Alkantara Festival 2008)

Uma coisa é a experiência interestadual, de um Brasil de muitos Brasis. Outra é a transcontinental. Ambas distintas e com implicações políticas, artísticas e sociais específicas. Refiro-me ao fato de que, por sermos brasileiros (logo, um mosaico híbrido de dobras e frestas), acabamos por ter outro olhar para uma realidade que nos é familiar porém diferente. Daí, talvez, venha a interesse pelas "vozes dissonantes em tempos de pensamento único" da curadoria do Alkantara Festival 2008 (antigo Danças na Cidade), realizado entre os dias 22 de maio e 08 de junho últimos, em Lisboa, Portugal.

Nesse contexto, aconteceu o segundo workshop para jovens críticos, da TEAM Network (Transdiciplinary European Arts Magazines) junto com um encontro de artistas e dramaturgos que o evento português promove desde 1998, para os quais fui selecionado e participei este ano. Um momento de reflexão, coordenado por Gwénola David (Revista Mouvement, FRA) e Nayse Lopez (Site idança, BRA), onde se discutiu a questão sobre o que faz um festival ser político, desde sua curadoria até o ato artístico. Dentre consensos e dissensos, discorro sobre alguns aspectos.

Na relação hipotética entre artistas e público, o debate político e social pode chegar a outras ressonâncias. De fato, o mundo em que vivemos nos predispõe à crítica, como defende o teórico polonês Zygmunt Bauman(2), de "indivíduos livres" para falar e fazer o que quiser, vinculando o fazer crítico a uma ação que emancipa (ou, pelo menos, deveria). Mas seu desdobramento, ressalta ele, é pueril, incapaz de afetar a rotina que nos é imposta diariamente. Tem a ver com o que dizem outros pensadores da biopolítica: interiorizamos a opressão do ter de consumir para ser algo, uma gestão pelo e no consumo compulsivo.

Assim pretendeu o Alkantara Festival, antes nomeado como Danças na Cidade. Na edição desse ano, sob o lema "Mundos em palco" (ver www.alkantarafestival.pt), reforçou suas intenções de desterritorialização das ditas artes performativas (dança, teatro-físico e performance, principalmente) ao incorporar na programação trabalhos de criadores locais e de outros países europeus e africanos, apresentados em vários espaços da capital portuguesa.

Como também incentivou os artistas a tecerem outras relações com a cidade de Lisboa. Destacou-se, nesse sentido, o espetáculo Íman, de Filipa Francisco e Wonderfull's Kova, que  trouxe a reflexão sobre os limites e possibilidades de um projeto artístico de caráter social, ao trabalhar com um grupo de hip hop formado por meninas do bairro da Cova da Moura, na região metropolitana de Lisboa. Limites que se referem a uma instrução do que seja um espetáculo de dança contemporânea que busque desenvolver autonomias artísticas. Possibilidades pelo exercício de generosidade que se efetivou nos encontros-deslocamentos entre dança e periferia.

O desafio, então, de todo e qualquer evento cultural parece ser o de buscar estratégias para outras relações entre arte e cidade. Um reconhecer-se entre um "desestabilizar expectativas" e, ao mesmo tempo, um "acelerar a rotina", como propõe o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Fiquemos atentos.

PITUBA R1: linha de ônibus urbano da empresa BTU que faz o percurso entre os bairros do Campo Grande e Pituba. Cerca de 1 hora de viagem de ida e 1 hora de viagem de volta.

(2) Em Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001,  pp. 31-37.

Em A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2006, pp. 41.