[sessão temática 4]
   
 

Modos de Subjetivação na Cidade

Robert Moses Pechman e Luis Antonio Baptista

Dos nove trabalhos selecionados para esta sessão  pode-se divisar dois eixos temáticos: aquele que articula subjetividade/corpo/alteridade/urbanidade  e outro que opera as relações entre subjetividade/cartografia/narrativa.

No que tange ao primeiro eixo cinco textos se impõe:, “Uma outra urbanidade (ou como semear flores raras)” de Silvana Tórtora e Ana Godoy, “A cidade como um texto: pluralismo da experiência homossexual masculina no  Rio de Janeiro contemporâneo” de Marcelo Ferreira et alli, “Apontamentos sobre a relação loucura e arte”de Mariana Liberato e Magda Dimenstein, “Micropolíticas urbanas”de Iazana Guizzo e “A cidade: o jogo da alteridade de Maria Nogueira e Jardel da Silva.

O que nos contam eles,então, dos Modos de Subjetivação na Cidade?

O texto de Iazana Guizzo “Micropolíticas urbanas” tem como premissa que na cidade os sujeitos, os objetos e as práticas são forças urbanas que estão em constante  relação e que toda relação entre forças é uma relação de poder. Nesse sentido não haveria nem sujeito, nem objeto, nem espaço anterior às lutas na constituição, seja do sujeito, seja do objeto, seja do espaço. Assim, o lugar/um lugar- com sua arquitetura, com seu urbanismo – é sempre uma síntese da correlação de forças que o compõe. Afetamos e somos afetados por diferentes forças e intensidades a cada momento e assim somos constituídos a cada relação. Para a autora, pensar a o processo de subjetivação na cidade implica em reconhecer que esta não é imutável, não possui uma essência  ou identidade interior, mas deve ser entendida como um processo que se forma a cada relação com a exterioridade. Sendo assim, os sujeitos e seus corpos e seus afetos são produzidos a cada momento por relações de forças em constante mutação. A subjetividade,  pois, não é o que produzimos como fruto de nossas mais íntimas paixões; mas, submetida ao social, é aquilo que absorvido do social pelo indivíduo, volta ao social temperado pelas perguntas que este faz ao mundo sobre si mesmo e faz a si mesmo sobre o mundo .

Não havendo um sujeito fixo fechado numa essência nem um espaço fixo o que resta são relações, de força e de poder. E é aí, nesse torvelinho que a subjetivação se faz.

Mariana Liberato e Magda Dimenstein debatem em seu texto “Apontamentos sobre a relação loucura, arte e cidade”os diferentes modos de viver a loucura e habitar a urbe a partir da experiência estética, que teria o papel de desestabilizar formas de ver a loucura e enquadrar essas subjetividades. Que “paisagens” urbanas, através do recurso à arte, a cidade poderia oferecer a pessoas em sofrimento psicológico de forma a produzir novas sociabilidades e novas porosidades entre estes e seu lugar, se perguntam as autoras.

Se escondendo nas sombras da cidade a loucura trilha o caminho da invisibilidade, percorre o lado oculto da urbe e por isso mesmo destituída do direito à sociabilidade, ao social, à cidade.

Incluindo o louco na cidade Mariana e Magda lhe proporciona a potência de produzir sociabilidade em contacto com  social, devolvendo-lhe a vida comunitária roubada. Para tanto a experiência artística operaria como máquina de guerra, facilitando o encontro, a circulação e a re-apropriação do espaço público. A cidade, metonimizada na praça, pode então ser vivida como lugar de trocas e afetos por subjetividades mantidas trancadas, até então, em corpos roubados à convivialidade.

No trabalho “Uma outra urbanidade”, Silvana Tótora e Ana Godoy  procuram mostrar que é pela urbanidade que o liame entre território, existências e subjetividades se manifesta. Não se trata mais, alertam a autores, do processo educacional, mas de uma contaminação dos indivíduos pelo ‘ethos’ urbano. A cidade se impõe, então, não mais como um destino previsto, mas como uma história por se fazer, ou seja, descaminhos, novas possibilidades de interação. Lugar de todo risco, para se abrir à educação que não seja apenas conhecimetno mas experiência de encontros e trocas existenciais, a cidade deve poder acolher novas percepções e afecções para gerar sensações. Ali onde a experiência das sensações está interditada não é mais cidade, não é processo educativo, é cidadela, é processo de treinamento e adestramento. Abandonando as certezas da racionalidade, a experiência educacional se transforma num salto no escuro na direção do desejo. É arriscado, mas é o único caminho possível de reinvenção da urbanidade adestrada, é a única chance de produção de uma nova urbanidade, que mais do repressora, seja produtora... de desejos.

Maria Nogueira e Jardel Silva no seu estudo “A cidade:o jogo da alteridade” alertam para a importância que a esfera do privado vem tomando e o impacto disso na experiência de subjetivação. A questão que se impõe, então,  é relativa à alteridade, que passa a ser percebida  como ameaça. Daí o impulso a tematizar o inesperado da convivialidade como um risco do qual é preciso se proteger a qualquer custo, mesmo que esse custo seja a própria sociabilidade. O privado passa a ser imaginado, então, como a única arena possível de fazer-se da cidade. Um modo antropofágico de subjetivação se impõe e a cidade passa a ser vista apenas como um lugar de sobrevivência, de consumo, onde a única maneira de matar a fome  é através da caça, onde a própria cidade vai ser devorada.

No trabalho “A cidade como um texto: pluralismo da experiência homossexual masculina no Rio de Janeiro contemporâneo” o grupo do Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense rastreia a sociabilidade entre os homossexuais tentando fazer emergir uma cidade invisível à luz do dia. Nessa cidade das sombras os autores procuram captar a presença miúda do desejo, da contra-palavra aos discursos dominantes. Trata-se de dar voz à narrativa homossexual  confirmando-a como mais uma das narrativas da cidade, evitando que ela se individualize numa subjetividade medrosa de cidade e por isso mesmo não se politize.
Escondidos na cidade os homossexuais constroem nichos de sociabilidade e acabam forjando subjetividades marcadas pelo peso da injúria e pelo temor... da cidade.
A proposta do grupo aposta na potência do protagonismo da cidade como ação política que assegure que todos seus filhos têm direito a ela, que todos possam desejar o desejo de fazerem o que em entender com seus desejos e ainda assim desejar ser da cidade.

Relativamente ao segundo eixo de trabalhos selecionados  temos o seguinte quadro de estudos:”Cartografias para estrangeiros na Roma Negra e na Cidade Maravilhosa” de Thaís Portela, “A experiência formativa do deslocamento de trabalhadores em Belo Horizonte” dos professores do Projeto de Educação de Trabalhadores da UFMG, “Equivocidades: passagem entre pensamentos”de Danichi Mizoguchi e “A saudade do Rio e o amor público” de Mauro Carvalho.

Thaís Portela nos apresenta a cartografia de duas cidades- Rio e Salvador- que funcionam como condensadoras de subjetividade , a partir das quais procura entender como turistas e contra-turistas operam suas espacialidades. Nesse sentido a autora evoca os epítetos de cada cidade- Rio: a cidade maravilhosa e Salvador: a Roma Negra do candomblé- para mostrar como essas adjetivações trabalham para fazer das cidades um espetáculo para atração do turismo. Para Thaís nomear é uma operação de constituição de sentido da coisa nomeada e, fundamentalmente, de imposição política e de uma política para o espaço.

Tais apelidos da cidade marcam-na como uma cicatriz ,“obrigando” as subjetividades a curvarem-se à força desse apodo , remetendo-as para o mundo do exótico e impedindo que elas enfrentem a cidade no seu inesperado, no seu desconhecido, naquilo dela que é a experiência do encontro com a alteridade, com a diferença. “Cidade Eterna”, “Cidade Luz”, “Cidade Maravilhosa”, “Roma Negra”, de quantas invenções sociais se faz uma cidade? Mas a que servem essas invenções se a possibilidade de re-inventar a cidade a cada passo está toldada por um ‘script’  já conhecido e nunca atualizado?

O grupo do Projeto de Educação de Trabalhadores analisa os processos formativos de uma percepção da cidade a partir da experiência de deslocamento de trabalhadores de seu bairro para o conjunto da cidade de Belo Horizonte. A partir desses deslocamentos analisa-se seu impacto na percepção que esses trabalhadores têm da cidade a nível de apropriação do espaço urbano. Essa experiência, segundo o grupo,  teria o poder de produzir, sob certo aspecto,  formas de subjetivação que dão a esses trabalhadores uma percepção muito limitada da cidade e , portanto, de seu direito a ela. Se  “o caminho faz-se ao caminhar-se” os passos desses trabalhadores  não lhes garante a entrada na cidade. Na medida em que os sujeitos atribuem aos seus deslocamentos sentidos e significados, como se constitui a experiência educativa do deslocamento para esses homens? A sua percepção fala de uma cidade que não acolhe os sujeitos, restringindo seus movimentos e por tabela sua cidadania e seu “desejo de cidade”. A precariedade em relação ao direito de ir e vir faz desses trabalhadores matéria invisível para uma política de transporte mais integradora. Faz com que esses trabalhadores percebam a cidade como um lugar aonde ainda não chegaram. Nem todos os caminhos levam à Roma!

A análise empreendida por Mauro Carvalho no texto “A saudade do Rio e o amor público. Narrativas urbanas de uma cidade” trilha os caminhos empreendidos por um suposto flâneur vagando pelas ruas e no seu vagar vai dando vida à cidade tirando-a da letargia da mesmice urbana dada pelas intervenções urbanas  que vendem o passado da cidade como a mais nova mercadoria na vitrine da cidade. Atento às sutilezas urbanas o autor sugere retirar das ruas novas narrativas que possam se contrapor à narrativa linear que a cidade da mercadoria conta para a mercadoria cidade, aquilo que pensa ser a vida urbana. Trata-se de um combate urbano onde diferentes narrativas,   que gestam diferentes urbanidades, entram em choque . Mauro nos fala de um direito a novas fabulações, de uma possibilidade de vestirmos outros corpos desde que nos deixemos afetar pela tensão dos combates pela cidade, desde que possamos acreditar que a paisagem urbana/a paisagem humana é o derradeiro Acontecimento da cidade.

“Equivocidades: passagem entre pensamentos” de Danichi Mizoguchi é um texto que  acena para a possibilidade da cidade contemporânea produzir existências e pensamentos inéditos  a partir dos inúmeros encontros que nela possam se dar. Espelhando-se nas caminhadas pensantes dos filósofos da pólis, a partir da noção de experiência benjaminiana, o autor quer fazer falar a cidade e as vidas que se escondem por detrás dos muros. Trata-se de caminhar para traçar uma cartografia que revelasse possibilidades de encontros, descobertas de sensibilidades  desconhecidas, afetações inesperadas, materiais com que se pode engendrar urbanidades inauditas.

Caminha-se pela cidade com Danichi e este vai nos revelando, na impenetrabilidade do cotidiano, o maravilhoso no coração do dia-a-dia. A cidade é sagrada, parece nos dizer o autor, por isso a necessidade de uma iluminação. Mas que seja profana, para poder extrair do cotidiano algum saber que nos permita errar, no sentido de errância e também de erro. Que nos dêem o labirinto , mas também que nos proteja de uma racionalidade bruta para a qual os destinos da cidade  são imutáveis. Perder-se com instrução, usufruir erros para fugir das formas identitárias, recomenda o autor. Fugir do mesmo, defrontar-se com o outro, intercambiar experiências. Em uma palavra  deixar-se invadir pela cidade, deixar-se fazer pela cidade... para poder fazer cidades.