vol.1
n. 03_ A cidade como campo ampliado da arte 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

(de)ambulantis

ou ensaio sobre três cidades que passeiam em corpos nômades: Rio, Lisboa e Berlim.
Daniela Brasil

 

"É em nós que as paisagens
têm paisagem."

livro do desassossego
Fernando Pessoa

 

À propósito de Fernando Pessoa e seu desassossego, tenho feito algumas viagens dentro de mim. Comecei por pensar que não são apenas os viajantes que viajam de cidade em cidade, mas também que as cidades viajam de viajante em viajante. Cheguei à ideia de que as fronteiras entre corpo e cidade confundem-se à medida que nos movemos e nos contaminamos não apenas de paisagens, mas também de ritmos, sorrisos, odores e sabores. De olhares, de gestos e de desejos de ser para além de outro oceano. De vontades que se expandem corpo afora, saem da pele e seus poros e se perdem pelo ar para finalmente se encarnarem em lugar incerto e não sabido, algo como aquele famoso gosto à café com madeleine do Proust. 

À propósito da pele - fronteira última e primeira - é a única que não podemos transpor. Ela é a maior fronteira que pode existir porque esta não podemos absolutamente cruzá-la. Podemos ultrapassar-nos, mas não ultrapassamo-nos. A pele contêm-nos de tal modo que é a partir dela que começamos a existir. É ela que nos denota e nos contorna, é através desta fronteira de carne e pêlos que nos recortamos das paisagens, evidenciando nossa presença no mundo. Assim penso, portanto, que os corpos desenham as cidades, são eles que as revelam e as tornam vivas, múltiplas, imprecisas. Os corpos desnorteiam a urbe. Transformam as cidades em ideias incapturáveis, porque as tornam móveis, as tornam muitas. 

Os corpos levam as cidades consigo. Corpos nômades e sem rumo são cidades à deriva.

Então, meio sem rumo certo, perdida na dissolução das fronteiras identitárias e culturais de mim mesma, comecei a vaguear por algumas pessoas que são exatamente as três cidades mais importantes para mim. Uma é o Rio e a outra é Lisboa. A última é Berlim. Estar com estas pessoas é como estar nestes lugares. O facto é que nem elas, nem eu, estamos lá. Por eu própria não ter mais fronteiras, a minha pátria é a minha língua. Já agora para não esquecer nem o Camões nem o Caetano, e o facto de que neste ano de 2007 comemoramos quarenta anos de Tropicália. Inclusive ano este de grande discussão acerca da reforma ortográfica da língua portuguesa - polêmico, é certo, mas que me ajuda a me situar melhor entre o dois lados do Atlântico, diminuindo minhas impossibilidades de escrever-me portuguesa e brasileira ao mesmo tempo.

Escrever então sobre fronteiras, numa revista de Weimar que explora justamente a ideia da língua como lugar, me parece algo não só interessante mas também absolutamente pertinente. Por isso passarei agora a escrever estas três pessoas da qual falava. Escreverei destas pessoas que são lugares, e dos lugares que são ideias, e portanto expressam-se aqui sob a forma do meu próprio lugar pátrio que é essa língua portuguesa imperfeita e intermediária, como eu própria. Assim, querido leitor, perdoe-me as incorreções, mas o meu português é mais ou menos duma geografia a 30ºN e 15ºW.

início.

Meu Rio é a Karla Morena. Se nela penso, vejo a sala rosada da sua antiga casa, onde falava-se com um leve sotaque francês e experimentavam-se viagens ao médio oriente, dada a cor de açafrão que emanava dos odores vindo de sua excêntrica cozinha. Da varanda de sabor árabe, estávamos em Santa Teresa, via-se o Pão de Açúcar contra o céu absolutamente azul de um fim de verão. Verão lavado pelas águas de março e alegrias restantes de um carnaval sambado pelas ladeiras de paralelepípedo afora. O recorte que ficava da janela daquela sala era então como uma pintura à óleo viva, resgatada subitamente de um dos séculos XVIII que ficou por terminar. A Karla, morena em tudo, descia e subia escadarias rumo à Lapa, perdia-se pelas curvas em aulas de tango, flamenco e tamborim. Sua vida intensa tinha sempre espaço depois dos ritmos estrangeiros para um “cabrito com arroz de brócolis” - especialidade tradicional do Portugal reinventado pelo restaurante Nova Capela, antes da noite acabar no Arco-Íris.

A morena é a malícia dos olhares que se confundem e perdem-se na noite carioca, entre a idéia Faustofawcettiana de Copacabana e a nostalgia da Princesinha do mar. Ela é um pouco de Iemanjá e de Santa, profana, absolutamente elegante, à beira do vulgar.

A Karla morena é todas essas paisagens. Ela junta a Normandia e a Aux-en-provence com o Líbano, a Itália com a Índia e a Tailândia, o Amazonas com a Liberdade e Madureira. Ela é indescritível, ao mesmo tempo que impossível, diria quase indelével. Morena é esse Rio misturado, cosmopolita, elitista e popular. Esse Rio intenso, denso, de múltiplas caras, corpos, cores e cheiros, de diferentes velocidades e camadas sociais.

Onde ela agora está, eu não sei. Algures entre o Pacífico e o Índico, creio. Mesmo sem saber exatamente aonde, tenho certeza que lá onde ela está ela é a mais carioca, o melhor retrato do Rio que nessa cidade indefinida alguém poderá encontrar. Está tudo no seu corpo farto, nos seus cabelos negros cacheados, no seu olhar profundo e naquela pele misturada de sangue árabe, negro e índio, português e francês. E claro, no seu jeito de andar.

pausa.

América nasceu em Lisboa, já lá se vão mais de três quartos de século. Sua mãe, não sei se sem saber, ou se já com aquela mesma vontade de Pessoa de ser para além doutro oceano a qual me referi à bocado, batizou-a com o nome do continente onde sua filha iria viver bem mais da metade da vida. Seu nome previa o futuro: América. O novo continente dentro do velho. E como Pedro Álvares Cabral e Dom João VI, levaria uma de muitas Lisboas aos trópicos, perpetuando os azulejos nas paredes das salas, as tapeçarias, os altares e os sabores à azeite de oliva e “bacalhau à Gomes Sá”.

América é para mim as quintas e seus pomares, a leitura de romances ensaboados à sombra duma azinheira que já não sabia a idade (mas que não era em Grândola, não ouvia as Cantigas de Maio e nem era revolucionária). América é enxirida, intrometida a saber de tudo das vidas dos outros. Gosta de espreitar pelas frestas das janelas e de saber quem vai e quem vem. Ela não é Alfama, mas parece ter levado algo das sardinhadas de junho pela rua afora. América é a sueca e a biriba, a paciência e o pontinho. Cartas, chás e amigas em campanhas de benificiência do grupo “Lyon”. Ela sempre costurou pra fora, mas não era qualquer modelo não, apenas os melhores que uma senhora de respeito e de peito poderia encontrar nas revistas francesas. As revistas, estas América comprava regularmente no Chiado, sendo que depois continuaria a recebê-las durante todos os anos sessenta e setenta em sua residência no Brasil.

América ainda hoje está aí, digo, no Brasil. Diz-se demasiado cansada para voltar. Acho que a última vez que em Lisboa esteve, lá se vão uns cinco ou seis anos, disse-me que a sua Lisboa já não era sua, sua Lisboa é apenas aquela - que depois de tantos anos nos trópicos -pôde sobreviver em si. Quando em Portugal por última vez esteve, viu que sua amada Belém agora era somente os Jerónimos e os Pastéis, porque mesmo na Praça do Império já não havia as flores de outrora. Reparou que as quintas já não são mais quintas, senão que conjuntos habitacionais entrecortados de presentes incertos e futuros que ficaram pra depois. Na Baixa, a Pastelaria Suíça também não tinha mais o velho sabor das vitrines parisienses de Baudelaire, mas pelo menos a bica curta e os doces conventuais continuavam sensacionais.

Ah, mas o cheiro a castanha que se espalha por todo o outono e inverno alfacinha, isso sim é que é! Enche a cidade com aquela fumaça que lhe faz lembrar Dom Sebastião. As brumas entram pelo Tejo afora, lá por onde a água acaba e a terra começa, apagando - ainda que somente por alguns instantes - a cidade branca.

Acho que é esse branco ultramarino que faz com que América, seguindo Pessoa, que por sua vez foi seguido por Saramago, duvidem se Lisboa alguma vez existiu.

última pausa.

Lars, assim como Berlim, ainda é uma cidade partida. Ele vivia do lado de lá do muro, e ia sempre espreitar o que passava do lado cá. Obviamente não conseguia satisfazer esta vontade, e frustava-se com a sensação de impotência. Como ele era do lado de lá, podia passar férias em Portugal, e foi isso que ele fez toda sua infância. Diferente de seus pais, aprendeu a falar português. Desde miúdo ele levava Berlim para visitar a costa atlântica da Europa.

Na adolescência pegava carona, ou melhor, boléia, desde sua cidade natal por aquela estrada que cruzava os territórios proibidos da Saxônia, para chegar na Europa ainda com fronteiras dos anos oitenta, mas que ele, com seu passaporte da Alemanha Ocidental podia ultrapassar (coisa essa que ele e seus amigos não entendiam, nem eu). So wie so. De qualquer das maneiras era aquela Berlim ocidental de Kreuzberg que ele levava em si, no seu rock`n`roll e nos cabelos compridos, nas calças de couro (couro que em Lisboa diria-se pele, p’le, p~eêl).

Lars, com suas calças, cabelos e posturas é duma masculinidade quase bárbara, levava uma Berlin presente na forma de parar, sacudir a cabeça e ajeitar os pés rapidamente de um lado para o outro, dentro daquelas botas de cowboy - com umas esporas metálicas e bico fino. Em Portugal fazia sempre calor, mas aquela Berlim presente em Lars não lhe deixava tirar as tais das botas. Só agora, muito depois da queda do muro e de algumas de suas fronteiras internas é que ele aprendeu a deixar-se andar de Havaianas - aliás ele e metade da Europa, mas esta contaminação sul-norte é uma outra estória.

Lars é Berlim da cabeça aos pés, mesmo que ele fale o mais refinado hoch deutsch. Sua conta é no Berliner Volksbank, sua cerveja é a Berliner Kindl e sua jaqueta, sua t-shirt e sua toalha de banho são do melhor clube de futebol da Bundesliga: o Hertha BSC Berlin. Lars é o Mitte, Oranienburg, os Kebabs, a Fernsehenturm e o U-bahn. Gleisdreieck, Görlitzerpark e a noite sem fim daquela cidade tantas vezes partida e repartida. Ele é forte, onipresente, onipotente e sempre denso em suas cicatrizes invisíveis.

As suas, as de Berlin e as minhas cicatrizes são como linhas que desvelam lugares em contornos imprecisos, como se a memória pudesse se imprimir na pele de quem a carrega.

Finalmente, queria dizer-vos que acredito que as fronteiras existem em e entre corpos, e que são justamente elas que constantemente nos obrigam nos questionar e a nos reposicionar no mundo. Fronteiras não são fixas, elas sempre se constróem e se diluem, só não sei bem até quando. Acho que as linhas, as fronteiras e os limites deambulam mais pelos nossos corpos do que pelas paisagens, porque estas, ah, estas as reinventamos sempre(!) - ainda que somente dentro de nós.

Weimar, numa tarde chuvosa do final de 2007.