| Fazer-Dizer Performativo  em Dança: corpo; cidade; performatividade  Por Jussara   Setenta(1) De partida o título desse artigo pode provocar perguntas do tipo: de  que se trata um fazer que é dizer e, ainda performativo? O que isso tem a ver  com cidade? Que é performatividade? Como pode estar próximo do corpo? O que  isso tem a ver com dança? Será que performatividade é a mistura de performance  com cidade? Mas e a dança onde está?.  No espaço do corpo, da dança e da cidade ocorrem  negociações, traduzidas na articulação de diferentes informações que  possibilitam o deslocamento de idéias e pensamentos que produzem re-inscrições  e re-configurações nas maneiras de organizar e enunciar falas. Falas no corpo,  do corpo. Falas de dança.Sendo a  dança um fazer-dizer, seu processo de criação se dá através de mediações que  acionam encadeamentos corpo–ambiente. Constrói modos de subjetivação da cidade  na observação e discussão no corpo. No fazer-dizer de corpos urbanos.  As fronteiras (dentro/fora) apresentam-se  transponíveis, permeáveis e disponíveis para trocas entre sujeitos que se  aproveitam desse movimento para constituírem-se enquanto sujeitos, para  implementarem o processo de subjetivação – termo trazido de Foucault (1979), que  considera que esse processo ocorre primordialmente no corpo; na formulação de  corpos sujeitados a um tipo de poder que age e ativa a produção do sujeito. O processo de construção artística em dança  também pode ser tratado como algo que colabora para a construção do sujeito,  pois é o que aciona a produção de subjetividade num trânsito de informações que  torna visível o que se encontra invisível no início do processo. Assim, é  possível falar de sujeito num processo de criação em dança, desde que se tenha  em vista um processo de subjetivação - o da produção de subjetividade num fluxo  de troca entre o sujeito e o mundo, numa relação que se estabelece na formação  dos campos de fala que vão produzir falas de dança. O exercício de tentar aproximar corpo, cidade e performatividade  parece se constituir enquanto uma empreitada performativa. O termo performativo provém da Teoria dos Atos de Fala trabalhada  pelo filósofo inglês John Langshaw Austin. Ele parte da premissa de que falar é  uma forma de ação. Sua teoria vai considerar linguagem como ação levando-se em  conta convenções, contextos, finalidades e condições. Na teoria dos atos de  fala existe o entendimento de significação como ação de linguagem. Quando  falamos, significamos mais do que o significado referencial daquilo que  proferimos: realizamos uma ação. A linguagem é, então, o instrumento da  realização de tais ações que não ocorrem fora da linguagem, uma vez que é ela  mesma que as constitui.  Ação... linguagem... Dança...parece que algo começa a fazer sentido,  mas e a tal da performatividade? A partir da teoria de Austin, Judith Butler, filósofa americana  expande o conceito de performativo para o conceito de performatividade. De  maneira mais ampliada, vai compreender os atos de fala como atos  corpóreos.  Seu interesse está nos atos  de fala como organizações no corpo, a partir de um entendimento lingüístico de  que a fala não está só no verbo, mas também no corpo.  Visto dessa maneira, o corpo, enquanto organização corporal em ação  reúne e troca informações produzindo atos que ampliam o discurso oral e onde é  possível perceber formas de poder, de censura, e de exclusão. A fala é  construída no corpo e pelo corpo que assume a responsabilidade pelas citações e  convenções de linguagem presentes nesse ato. O ato de fala numa relação  corpórea comunica-se através do fazer.  Fala construída no corpo, pelo corpo... dança se processa no  corpo.... então, a dança produz atos de fala?  Alguns princípios da Teoria dos Atos de Fala e o conceito de  performatividade instigaram questões e detonaram concepções que promoveram a  construção da hipótese que desmonta a idéia da dança como indizível. Passo  então a considerar que a dança se diz em seu fazer. É, portanto, um  fazer-dizer. Aquele que não “comunica” apenas uma idéia, mas “realiza” a  própria idéia que comunica.  Sob essa perspectiva o corpo que dança vai lidar  com o processo de construção artística em dança, entendendo-o como algo que  colabora para a constituição do sujeito, pois é o que aciona a produção de  subjetividade num trânsito de informações onde as percepções e a produção de  acões-movimentos do/no corpo que dança não prescindem das informações que estão  no mundo e, num compromisso crítico-reflexivo, aproximam a dança daquilo que  ela enuncia.Vai organizar sua fala em ações corporais que se processam  no fazer e, as falas construídas no corpo e pelo corpo vão buscar investir em  questionamentos em vez de buscar respostas definitivas.  Os processos de investigação corporal das  falas de dança passam a exercitar modos diferenciados de formular suas falas. Entretanto, percebe-se que nem sempre é assim que se trabalha o  corpo em processos artísticos em dança. Nem sempre os inventores de dança expõem  o corpo como um apresentador de indagações e soluções provisórias. Através da  observação do modo como esse falar se produz surge a percepção de que existe,  dentre os distintos tipos de fala, um que inventa o modo de dizer-se. Ele se  distingue exatamente por não ser uma fala sobre algo fora da fala, mas por  inventar o modo de dizer, ou seja, inventar a própria fala de acordo com aquilo  que está sendo falado.  E são tantos os diferentes dizeres... e são tão diferentes os  fazeres ditos... que esses necessitam ser observados com mais atenção. Ao lidar  de maneiras distintas com a dança o corpo está todo o tempo processando informações  e, nesse constante movimento, vai se constituindo como corpo. Pode privilegiar  o exercício descritivo de referências, pode preferir a narrativa em seqüência  linear, pode priorizar o processo e não a obediência a um produto; pode optar  por várias outras escolhas.  A legitimação da relação sujeito e mundo vem  tornar públicas questões e dúvidas criadas ou provocadas a partir desse  relacionamento, e que inviabilizam o reconhecimento da identidade, da  característica única. O processo de criação é intersubjetivo, e nele ocorrem  processos de apropriação e transformação, então, não podemos pensar que esse  processo seja produzido por um sujeito exclusivo; e, sim, por um sujeito  atravessado, contaminado e modificado pelo próprio processo de exposição e  diálogo. Um sujeito como agente do fazer. Um sujeito que está no mundo e não se  fecha no seu mundo interno. Assim agindo, o sujeito-agente atua  performativamente num processo de criação onde são organizados os campos de  fala. A importância de se falar/trabalhar/tratar da performatividade na  contemporaneidade está em provocar, perturbar, e instigar a continuidade de  deslocamentos e descentramentos e tentar subverter procedimentos que fixem, e  rotulem idéias, pensamentos, produções e outros. São fazeres que levam a  dizeres específicos, fazeres que são considerados enquanto atitudes que podem  ser encaradas como condutas políticas. A performatividade conecta o poder fazer  aos poderes instituídos – social, histórico, econômico e político. Promove a  co-relação indissociável entre o que se faz e o que se diz – dizer o que faz,  fazendo o que diz. A compreensão da performatividade nos leva a identificar propostas  que indicam diferentes modos de pensar como se faz dança e, também, pensar as  implicações políticas e estéticas desse fazer. Faz pensar para repensar essas  instâncias - política e estética - no próprio fazer, no presente do fazer.  Pensar performativamente cria uma tensão nos modos como o corpo se move em sua  própria dança. O corpo é o seu assunto, daí a necessidade dele produzir os  movimentos que sejam capazes de reconfigurar os limites e as potencialidades do  seu dizer – daí, também, a necessidade de inventar o modo desse dizer ser  feito. O corpo é o foco primordial e indispensável para se pensar/estar o/no  mundo. E quando se trata do corpo que dança, sucede o mesmo. Pensar o corpo que dança na performatividade é desconectar-se da  idéia de corpo com formas definidas por molduras pré-esquematizadas, que vai  dançar organizando criativamente os materiais que já conhece. O corpo  performativo é um corpo em estado de “definição” contínua – vai realizar  definições provisórias e problematizadas em espaços de distúrbio. No trabalho  com a performatividade, a dança contemporânea vai se manter em um processo  contínuo de reconfigurar-se. Troca-se a ação de perpetuar pela ação de  transformar.  Quando a dança passa a fazer certas perguntas ainda não feitas,  passa a precisar exercitar um outro fazer-dizer, que seja capaz de dar conta  daquilo a que se está propondo. Lidar com a performatividade na dança incita o processo de inventar  danças. Mas não se trata de inventar novos modos de organizar materiais já  criados. Para quem está habituado a ver ou  fazer uma dança onde a questão se concentra, no modo como os passos e as frases  se ligam, há uma mudança grande desafiando esse olhar e esse fazer. A proposta de perceber dança como um fazer-dizer carrega, ainda,  outra necessidade, que é a de ser observada e tratada a partir destas  peculiaridades, que envolvem mudanças no jeito de observar, no espaço de  feitura, no espaço de exposição. Trata-se de subverter os modos habituais de  observar dança, seja por parte daqueles que se relacionam diretamente com o seu  fazer, seja por parte daqueles que recepcionam esse mesmo fazer. Para tanto,  será necessário desvestir-se de modelos-maneiras já instituídos e  convencionalizados nas práticas desse fazer e desse apreciar. Há que se  observar a dança que se apresenta e perceber nela, e a partir dela, o modo como  está se apresentando, as conexões que fez para chegar ao “resultado”. Tentar perceber, em vez de buscar uma legenda explicativa; buscar  descobrir como as idéias-questões-discussões estão formuladas; não tentar uma  relação imediata entre as ações movimentos que estão sendo mostradas e as  prováveis intenções que lhes deram origem – esses são bons lembretes para quem  deseja se aventurar na performatividade. Acionar a percepção em vez da busca  por explicação no trato com o fazer-dizer inverte o jeito  habitual/convencionalizado de fazer-apreciar dança. Propõe outras maneiras e  atitudes. Assim, é imprescindível modificar as atuações de fazedores e  apreciadores, e tentar se aproximar, tentar cruzar a ponte, não apenas ficar  num dos lados da margem “especulando” o que está acontecendo do outro lado.  Precisamos observar na dança as idéias na forma de movimentos em vez  de buscar reconhecer os passos que já conhecemos. Estar em ação migratória. Deslocar  ângulos de visão. Desvincular-se de portos seguros de argumentação, de valores  de referência – aqueles quase sempre binários e em oposição. Modificar os  padrões de comportamento ao observar e enunciar falas de dança. Falas que  são/estão no corpo. Que dialogam , com a cidade, com outros tantos corpos que  organizam distintas falas. Parece ser desse modo que o conceito de  performatividade aproxima-se dos corpocidades expostos e dispostos na urbanidade de  propostas artísticas em dança.  (1) Jussara Sobreira Setenta é professora adjunto da Escola de Dança da UFBA e atua   na Pós-Graduação e Graduação em Dança na mesma instituição. Doutora em   Comunicação e Semiótica pela PUC-SP é autora do livro O Fazer-Dizer do Corpo:   dança e performatividade e coordenadora do grupo de estudos em Dança e política. |