vol.1
n. 05_ modos de subjetivação na cidade 
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n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

Escuta das Barcas:::  Leitor:: Iazana Guizzo

Adentrar em outro ritmo, sentir o vento no rosto e o horizonte tão presente. É hora de desatar os nós das gravatas. “E lá vou eu, pela imensidão do mar.”¹ A barca atravessa a Baía de Guanabara em vinte minutos, tem bancos do lado de fora e muitas janelas para quem fica do lado de dentro. As janelas são baixas e abertas fazendo com que, durante o tempo de travessia, nós também sejamos atravessados pela baía. Incorporamos à textura do mar e fazemos parte do horizonte que ali venta e arrasta o caos da metrópole. E se a baía ao nos atravessar um pouco demorar, por certo levamos para dentro da cidade o ritmo do mar. Quanto tempo será que esse ritmo adentra a cidade? Quanto tempo leva para ele desincorporar?

Na travessia Rio-Niterói são vinte minutos de baía, de pausa, capazes de tirar um pouco o ritmo frenético, o caos dos engarrafamentos, o ruído, a violência, a correria de uma metrópole como o Rio de Janeiro. Um outro jeito de estar na cidade, imposto por um outro cheiro, pelo mar, pelo vento e horizonte, os quais consolidam um Rio em pausa. Esse ritmo da barca pode estabelecer uma outra relação de estar na cidade nesse tempo de travessia. Mas quanto tempo dura esse ritmo? Por certo não são vinte minutos exatos. Para uns talvez mais, para outros menos.

No entanto, essa forma de atravessar mudou: a partir de um “upgrade” dos serviços da barca Rio – Niterói o espaço não é mais o mesmo. Ao entrar é estranho, percebe-se algo ali semelhante a um avião, a um consultório dentário, quiçá a uma agência bancária. Recentemente chegou a barca nova, muito mais rápida. Ela vai em 12 minutos, ela não precisa “dar a volta”², ela é mais confortável, tem televisões e dá até para tomar um cafezinho. Atentos as grandes novidades e avanços, passa quase desapercebido aos seus passageiros o fato de que na barca nova não se pode mais viajar ao vento, nem mesmo ver o mar estando sentado. Para onde foi o horizonte? De que lado fica o pão-de-açúcar? Será que ela foi projetada para um lugar onde a água é tóxica?

Na dita barca nova não é mais possível sentar do lado de fora, ou melhor, não há lado de fora; as janelas são altas e possuem pequenas aberturas. Agora na travessia o ritmo incorporado é o da metrópole; é o mesmo daquele caos de uma grande cidade. Nós não estávamos sobre o mar? Os olhos estão atentos à televisão que passa apenas propaganda e, apesar da barca nova não ter alterado em nada o trajeto da antiga, a baía, agora, fica do lado de fora.

O espaço construído da barca mudou radicalmente. Em meio a uma das paisagens mais belas do mundo, o espaço dela é voltado para dentro. Confinada, a travessia hoje quase não difere do ônibus ou do metrô. A baía que venta e possibilitava outro ritmo, para o cotidiano de milhares de pessoas, passa quase despercebida. A barca nova acabou por produzir o Rio metrópole e nós perdemos a delícia do lado de fora.

Agora não é mais hora de desatar os nós das gravatas e, tão pouco, de dar uma pausa. É hora de andar mais rápido, ganhamos oito minutos³. São doze minutos de propaganda que, por ironia, na época dos Jogos Pan-americanos, passava imagens da própria Guanabara.4 A baía, agora, é para ver de longe, não mais para sentir, experimentar e, além de atravessá-la, ser atravessado por ela. A travessia nova ficou de mão única.

Uma, duas, três, quatro pessoas levantam na barca nova. Elas ficam em pé para colocarem seus próprios olhos na altura da janela. Elas atravessam a baía ao vento, mesmo que para isso a viagem fique mais desconfortável. Coladas na borda da barca, elas abrem as pequenas janelas e colocam seus rostos para o lado de fora. Buscam o horizonte, o cheiro, o vento, o intervalo; elas buscam a intensidade da baía nessa travessia sobre outra textura.

Mesmo que o espaço da barca nova dificulte que os corpos sejam atravessados pela baía, surgem nessa relação de travessia quatro outras forças. Em pé, elas fazem questão de se expressar e transformar a barca nova em ainda outro lugar. Não é mais a mesma barca nova, mas também não é igual a barca antiga. As quatro forças transformam a barca em possibilidade de rosto ao vento. Elas travam uma guerra com as forças impressas no espaço da barca nova e, naqueles instantes, redefinem as relações entre passageiros e baía. Elas fazem consistir uma outra força no espaço da barca nova. Outra força? Se há guerra é porque há discordância entre as direções dessas forças. As quatro forças querem ser atravessadas pela baía e a barca nova quer apenas que ela mesma atravesse os corpos.

Imagino o dia que essas quatro forças estiverem cansadas e precisarem sentar, por certo perderão nesses novos instantes a guerra da travessia. E talvez quando alguém embarcar na barca pela primeira vez não se atente ao fato de que é possível ficar em pé mesmo no lugar do banco. Que força é essa que tem o cotidiano? Que força é essa colocada na barca nova que reincide cada vez que alguém entra nela? Eu diria que essa é a força do espaço, esse é o seu poder, de produzir modos de atravessar a baía, de produzir modos que possamos encontrar ou desencontrar a baía de Guanabara.

Notas

Refrão do samba enredo da Portela: Portela, das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de Uma Noite.
2 A barca antiga ao sair de um ponto para chegar ao outro precisa manobrar de ré e virar a barca de frente ao seu destino. A barca nova anda para os dois lados, tem duas frentes e, por isso, não precisa dar a volta.
3 Não nos opomos a barca nova andar mais rápido, mas a ela não ter características de contato com a baía. A nossa oposição é em relação ao ritmo acelerado que o confinamento espacial da barca produz e não ao fato de ela ser mais rápida em oito minutos. A nossa questão não é numérica, mas intensiva.
4 A baía deixa de ser experimentada para ser vista como imagem. A experimentação dá lugar ao espetáculo, onde quem vê não participa, não age, apenas é receptor de uma imagem da cidade. Se não participamos da baía, não podemos ser atravessados por ela. O que acontece com a barca não é um processo isolado, também está presente no urbanismo. “Em um momento atual de crise da própria noção de cidade, que se torna visível principalmente nas suas idéias de não-cidade, seja por congelamento – cidade-museu e patrimonização desenfreada -, seja por difusão – cidade genérica e urbanização generalizada. Essas duas correntes do pensamento urbano contemporâneo – em voga na teoria mas principalmente na prática do urbanismo – apesar de aparentemente antagônicas, tenderiam a um resultado semelhante: a espetacularização das cidades contemporâneas.” (Jacques, 2003:13)

 Bibliografia

- BAPTISTA, Luis Antônio (1999). A cidade dos Sábios: reflexões sobre a dinâmica sócia nas grandes cidades. São Paulo. Editora Summus.
- BENJAMIN, Walter (2000). Rua de Mão Única. São Paulo. Editora Brasiliense. (tradução Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barboza e assistência de Pierre Paul Michel Ardengo.)
- FOUCAULT, Michel (2004). Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis. Editora Vozes. (tradução de Raquel Ramalhe).
- ___________________ (2002a). Em defesa da sociedade. São Paulo. Editora Martins Fontes. (tradução de Maria Ermantina Galvão).
- ___________________ (2002b). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro. Editora Graal. (Organização e Tradução de Roberto Machado.)
- GUATARRI, Felix (2006). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. Editora 34. (tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão).
- JACQUES, Paola Berenstein (2003). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade/ Internacional Situacionista. Rio de Janeiro. Casa da Palavra. (tradução Estela dos Santos Abreu).
- MEIRELES, Cecília (1999). Cecília Meireles: crônicas de viagem 2. Rio de Janeiro. Nova Fronteira.
- SANTOS, Carlos Nelson F. dos (1988). A cidade como um jogo de cartas. São Paulo. Projeto Editores.

Iazana Guizzo é Arquiteta e Urbanista, mestranda em estudos da subjetividade do Programa de Pós Graduação de Psicologia da UFF (Título da Dissertação, Micropolíticas Urbanas: uma aposta na cidade expressiva). Este trabalho estuda a relação do espaço com a produção de subjetividade, o que possibilita a análise lúdica sobre os distintos modos de atravessar a baía de Guanabara.
Além disso, desenvolveu a pesquisa “Arquitetura Enquanto Processo” no grupo de arquitetos In Loco realizado na comunidade Cruzeiro do Sul (Porto Alegre 2000-2003); participou do projeto e execução do AIJ do Fórum Social Mundial (Porto Alegre-2005); participou na execução dos planos diretores de Nilópolis e São João de Meriti (Rio de Janeiro-2006); e atualmente trabalha no Programa de Estruturação Urbanística de Nova Iguaçu. (Rio e Janeiro 2007-2008)